Artigo Especial


   Os Verdadeiros Heróis da Resistência

 Por Clackson,  

O leitor que acompanha as reportagens e matérias deste site irá se deparar com uma situação um pouco diferente daquilo que está acostumado a ler neste espaço, e certamente em outros veículos dedicados ao turfe.  

Muito já escreveu, e decerto muito ainda se escreverá, sobre os grandes jockeys do turfe brasileiro, contudo uma grande lacuna nesse tema jockeys será preenchida neste artigo. Os jockeys famosos concentram todas as atenções do público, e não poderia ser diferente, mas caro leitor, o turfe não é composto só de jockeys famosos. O turfe é composto de muitos outros jockeys que fazem o espetáculo também, e eles são a grande maioria ausente das homenagens.  

Abrindo o tema, a raiz deste artigo será uma homenagem a essa maioria silenciosa e esquecida que propicia o verdadeiro espetáculo do turfe, não de forma coadjuvante, mas de forma ativa e heróica.  

Comparativamente aos outros esportes, o turfe é de longe o mais injusto e ingrato em termos de realizações profissionais. No futebol são onze jogadores agindo em conjunto com um objetivo comum, idem no basquete. No atletismo o atleta conta com ele e mais ninguém, no automobilismo o piloto conta com seu carro, um conjunto mecânico de altíssima confiabilidade.  

No turfe, o jockey conta com sua habilidade, e agora surge a principal diferença dos demais esportistas, e também com a disposição do cavalo, um ser vivo, em correr bem naquele dia e hora marcados. Na maioria das vezes o animal corresponde à expectativa, mas há também o dia que o cavalo não rende nada, sem a menor explicação.  

A vida de um jockey é o que se pode chamar de uma ditadura profissional, pois a sua jornada de trabalho inicia-se ao raiar do dia, todos os dias, nos trabalhos matinais, onde galopa vários animais e se expondo aos riscos inerentes a esse tipo de atividade, e nos finais de semana e feriados, ao contrário da grande maioria, o jockey têm uma árdua jornada de trabalho. Em resumo, enquanto os outros descansam o jockey trabalha.  

Como se não bastasse sua dura profissão, o processo de decisão de assinar uma montaria, que lhe garante a participação na corrida é um processo que muitas vezes beira a uma injustiça gritante. Explica-se:  

Os jockeys trabalham os animais na esperança de serem confirmados pelo treinador como a montaria oficial no dia da corrida, ocasião em que além de fazer parte do espetáculo, tentarão obter a vitória e seu merecido prêmio monetário. Ser jockey é uma profissão como outra qualquer e o prêmio a que faz jus é o meio de sustento de sua família.  

Os pilotos que têm contrato exclusivo com algum proprietário desfrutam de uma maior segurança, devido ao fato que além da garantia financeira contratual, eles já terão, por exclusividade, a montaria de um animal, mas a grande maioria dos jockeys, não têm essa primazia e dependem da confirmação de seus nomes como pilotos nas provas.  

Nessa hora entra a fase mais injusta da profissão. Muitos jockeys, que não são famosos, dedicam todo seu trabalho em deixar, junto com o treinador, o cavalo no ponto exato do preparo para a corrida e lograr o tão esperado êxito. Via de regra esse jockey é confirmado como o piloto oficial do cavalo, contudo o sistema não garante essa exclusividade.  

Alguns animais são visados por sua régia filiação, potencial de vitórias, inscrição em Grande Prêmio, trabalhos realizados, a “turma” em que estão inscritos etc., ou posto de outra forma, a chance de vitória é bem grande. Nesse momento um intenso trabalho de bastidores entra em cena e vários jockeys, famosos inclusive, entram em contato com o treinador ou o proprietário, propondo a preferência da montaria do animal para si, em detrimento ao jockey que vem trabalhando o cavalo.   

Não poderia se classificar essa atitude como desonesta devido ao fato que existe uma mercadoria em disputada (o cavalo) e um contingente de profissionais a disputá-lo (mercado). Esse jogo é a mais pura lei da oferta da procura. À exceção do jockey com contrato exclusivo, os demais participam de um “leilão” de oportunidades.  

Uma vez efetuada a alteração da montaria está selada a sorte do esforçado jockey que fez tudo por aquele cavalo com chance de vitória.

Ele madrugou todos os dias, se expôs ao risco de um acidente nos treinos, aprontou o animal e na hora de coroar todo esse trabalho, ele é preterido por outro.  

O raciocínio do proprietário é muito simples: trabalhou bem com fulano, corre e ganha com o beltrano, que é muito melhor.

Bem, chegamos ao ponto que está coluna irá provar que esse raciocínio é altamente questionável.  

Um primeiro argumento contra o status do “jockey muito melhor” é o da exposição ao “efeito Tostines”. O leitor mais novo não vai entender o significado dessa expressão, mas trata-se de uma propaganda do biscoito Tostines na década de 70 em que se perguntava: “Vende mais por que é fresquinho, ou por ser fresquinho, vende mais?”.  

Transpassando para o turfe, teríamos algo como “ganha muito por que monta muito, ou por montar muito acaba ganhando muito?”.

Em outras palavras, se as montarias de um jockey são muitas as suas chances de vitória também o são. É óbvio que aqui não se quer igualar as habilidades de cada um, pois estas são distintas e diferenciais.  

O círculo vicioso se fechou, pois o jockey escolhido que ganhou a montaria do cavalo, cuja chance de vitória é grande, somará mais essa oportunidade ao seu rol de vitórias e isso o credenciará, com vantagem, a lutar por mais montarias, ao passo que o nosso abnegado e preterido jockey, que fez todo o trabalho de base, acaba assistindo na arquibancada a vitória que seria sua.  

Esse é um outro lado do turfe que não aparece nos dias da corrida, pois para o grande público basta o nome que consta no programa, ou seja, o nome do cavalo e o jockey que irá montá-lo, agora como se chegou no nome do jockey...  

Muitos a essa altura do artigo estarão questionando que é uma temeridade entregar a montaria de um cavalo com chance a um jockey que, mesmo trabalhando e conhecendo o animal, não é o adequado para a corrida. 

De novo essa coluna irá provar de forma peremptória que esse argumento, no turfe brasileiro, é de uma falsidade gritante.  

Excetuando-se a análise técnica de um páreo, cujo parâmetro deveria ser a matriz de comparação, a grande maioria dos turfistas julga a qualidade de um jockey baseando-se nas poules que estão no seu bolso.

Se convertidas em vitória, o jockey é excelente, e for derrota, o jockey é fraco.

Como os “jockeys famosos” têm uma maior quantidade de montarias, e conseqüentemente um maior número de vitórias, o público logo esquece de uma má atuação do “famoso”, pois este logo ganhará uma outra corrida, ao passo que um jockey com poucas montarias irá demorar em montar novamente e o eventual fracasso será motivo para que seja olhado com desconfiança pelos treinadores e proprietários, fazendo com que o efeito Tostines se consolide.

Por ora, vamos aceitar essa situação e a partir dela provar a falácia desse raciocínio.  

Vale ressaltar que toda profissão, turfe incluso, possui os profissionais esforçados, os normais, os acima da média e os excepcionais, mas lembrando de novo que no turfe as chances para essa classificação são totalmente assimétricas e injustas.  

Convém lembrar que alguns proprietários julgam-se “treinadores seniors” e passam por cima dos verdadeiros conhecedores da matéria, os treinadores profissionais, e dão sem a menor cerimônia, as instruções da corrida ao jockey, e obtendo-se a vitória, obviamente o crédito é do “sênior”, e o fracasso debitado ao jockey, seja famoso ou não.  

Alguns parágrafos acima, disse-se que seria provado o argumento que a falta de oportunidades é que determinará o sucesso ou fracasso na profissão de jockey. Vamos as provas:  

O final de década de 90 uma égua de propriedade de um pequeno stud paulista vinha colecionando vitórias clássicas, sendo montada por um “jockey menos famoso”, e surgiu a natural inscrição no OSAF carioca. Pela importância da prova decidiu-se que um jockey “famoso” seria o piloto nessa prova, pois faltava experiência ao “menos famoso”.  

O “famoso” galopou somente uma vez a égua e lá foram, treinador e proprietário para a corrida. A égua tinha uma chance enorme nessa prova, tanto que o movimento de apostas da Gávea mostrava claramente isso.

Pois bem, o “famoso” largou com a égua e colocou-a numa posição diferente daquela em que o animal estava acostumado a correr. Fez uma reta final toda atabalhoada e chegou em quinto lugar.  

Na volta para repesagem, numa atitude de sinceridade, o “famoso” disse ao desmontar para treinador e proprietário: “Desculpe, mas corri errado sua égua, ela ganhava o páreo”. Nem o proprietário, nem o treinador comentaram nada com o “famoso”.  

Vejam o resultado da pseudo-estratégia do stud. Tiraram quem conhecia a égua como a “palma da mão”, porém menos “famoso” para colocar um desconhecido, mas famoso, e o resultado foi fracasso. Qual teria sido o resultado se a montaria fosse do “menos famoso?”.

Resposta: a chance de vitória seria maior!!!  

Não está aqui se querendo colocar os grandes jockeys num paredão, mas tão somente mostrar que eles também falham, poucas vezes é claro, mas falham e isso passa quase desapercebido.  

Vamos continuar com as demonstrações de que tudo é uma questão de oportunidade.  

Nessa mesma época, final dos anos 90, um grande haras paulista, que nunca havia ganhado o Grande Prêmio Brasil, tinha uma inscrição para essa magna prova, e o cavalo vinha sendo montado por um jockey do turfe paulista “menos famoso”. O treinador e proprietário decidiram manter o piloto que levara o animal às importantes vitórias.  

No dia da corrida, em uma raia mais que favorável, o jockey “menos famoso” imprimiu um ritmo na corrida e um percurso mais que perfeitos e venceu o seu primeiro Grande Prêmio Brasil de forma espetacular e vibrante. O proprietário chegara ao tão almejado título contanto com um jockey que era muito bom, mas nunca tivera uma oportunidade de mostrar seu valor.  

Continuemos com as provas.

Alguns jockyes que atuavam no turfe paulista, todos qualificados pelo público como de “menos famosos”,  devido à falta de oportunidades no turfe local, acabaram procurando outros países para trabalhar.

Se fossemos estender o raciocínio predominante na terra natal, a conclusão seria  que, se são medianos aqui o serão em outros locais. Nada mais falso que esse argumento. 

O jockey abaixo chegou a conquistar a tríplice coroa com um potro paulista, porém mesmo com esse curriculum suas oportunidades diminuíram consideravelmente, fazendo com que esse profissional procurasse outros locais, onde suas oportunidades seriam maiores.  

Pois bem, esse piloto foi para um outro país e hoje é o vencedor da estatística local tendo disputado com toda a nata do turfe local. Aumentando o poder da nossa demonstração, o segundo colocado na estatística desse mesmo hipódromo é também um jockey que migrou do turfe paulista, colega do vitorioso primeiro colocado.  

M.Nunes (branco)

Trata-se do campeão Manoel Nunes e o segundo colocado é o excelente jockey Fausto Durso. A esses dois honestos e competentes profissionais vai aqui a homenagem deste site,  

Vamos agora para a prova final contra esse ridículo argumento sobre jockey “menos famoso” no turfe. 

O jockey abaixo passou muito tempo trabalhando cavalos na Chácara do Ferreira (um antigo centro de treinamento mantido pelo Jockey Club de São Paulo) e suas montarias eram da ordem de uma ou duas por semana. Num lance de coragem, este brioso piloto decidiu migrar para o turfe americano. 

Como a cumprir a profecia de que a América é a terra das oportunidades, esse piloto com muito trabalho e dedicação é hoje o campeão das estatísticas do hipódromo de Calder, na Flórida, fato que esse que jamais seria imaginado por quem que fosse aqui do lado de baixo do Equador. Note leitor, um brasileiro campeão de estatística no país que é um centro de gravidade do turfe mundial.   

M.Cruz

Trata-se do excelente jockey Manoel Cruz, que demonstrou todo seu potencial e capacidade ao ter a oportunidade que sempre lhe foi negada aqui do lado sul americano. A esse vitorioso profissional o nosso reconhecimento de sua competência e profissionalismo.  

Veja bem leitor, três jockeys que aqui eram considerados como do “ segundo quadro” hoje brilham nos importantes centros turfísticos do mundo, levando consigo o apoio da torcida local, e nunca é por demais lembrar que nesse hipódromos a disputa por vitórias é renhida.  

Está provado, de forma absoluta, que no turfe tudo é uma questão de oportunidade. Fossem essas mais simétricas e teríamos muitos mais “famosos” atuando nos hipódromos.   

Quis este artigo prestar uma homenagem a todos os jockeys brasileiros, famosos ou não, que com sua luta diária fazem com que o espetáculo do turfe possa sempre ser eletrizante e que nós, daqui do lado de fora da cerca tenhamos por eles o respeito e admiração que merecem, primeiro pelo risco que se expõem nessa arriscada profissão e segundo pela forma abnegada que se empenham nesse mundo assimétrico que é o turfe.  

Honras e homenagens aos nossos heróis da resistência.   

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